sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Que crime cometeu o violão?



Habeas Pinho 

Na Paraíba, alguns elementos que faziam uma serenata foram presos. Embora liberados no dia seguinte, o violão foi detido. Tomando conhecimento do acontecido, o famoso poeta e atual senador Ronaldo Cunha Lima enviou uma petição ao Juiz da Comarca, em versos, solicitando a liberação do instrumento musical.  


Senhor Juiz 
Roberto Pessoa de Sousa  
   
O instrumento do "crime" que se arrola  
Nesse processo de contravenção  
Não é faca, revolver ou pistola,  
Simplesmente, Doutor, é um violão.  
   
Um violão, doutor, que em verdade  
Não feriu nem matou um cidadão  
Feriu, sim, mas a sensibilidade  
De quem o ouviu vibrar na solidão.  
   
O violão é sempre uma ternura,  
Instrumento de amor e de saudade  
O crime a ele nunca se mistura  
Entre ambos inexiste afinidade.  
   
O violão é próprio dos cantores  
Dos menestréis de alma enternecida  
Que cantam mágoas que povoam  a vida  
E sufocam as suas próprias dores.  
   
O violão é música e é canção  
É sentimento, é vida, é alegria  
É pureza e é néctar que extasia  
É adorno espiritual do coração.  
   
Seu viver, como o nosso, é transitório.  
Mas seu destino, não, se perpetua.  
Ele nasceu para cantar na rua  
E não para ser arquivo de Cartório.  
   
Ele, Doutor, que suave lenitivo  
Para a alma da noite em solidão,  
Não se adapta, jamais, em um arquivo  
Sem gemer sua prima e seu bordão  
   
Mande entregá-lo, pelo amor da noite  
Que se sente vazia em suas horas,  
Para que volte a sentir o terno acoite  
De suas cordas finas e sonoras.  
   
Liberte o violão, Doutor Juiz,   
Em nome da Justiça e do Direito.  
É crime, porventura, o infeliz  
Cantar as mágoas que lhe enchem o peito?  
   
Será crime, afinal, será pecado,  
Será delito de tão vis horrores,  
Perambular na rua um desgraçado  
Derramando nas praças suas dores?  
   
Mande, pois, libertá-lo da agonia  
(a consciência assim nos insinua)  
Não sufoque o cantar que vem da rua,  
Que vem da noite para saudar o dia.  
   
É o apelo que aqui lhe dirigimos,  
Na certeza do seu acolhimento  
Juntada desta aos autos nós pedimos  
E pedimos, enfim, deferimento.  
  

O juiz Roberto Pessoa de Sousa, por sua vez, despachou utilizando a mesma linguagem do poeta Ronaldo Cunha Lima: o verso popular.  

  
Recebo a petição escrita em verso  
E, despachando-a sem autuação,   
Verbero o ato vil, rude e perverso,   
Que prende, no Cartório, um violão.  
   
Emudecer a prima e o bordão,  
Nos confins de um arquivo, em sombra imerso,  
É desumana e vil destruição  
De tudo que há de belo no universo.  
   
Que seja Sol, ainda que a desoras,  
E volte á rua, em vida transviada,   
Num esbanjar de lágrimas sonoras.   
   
Se grato for, acaso ao que lhe fiz,  
Noite de luz, plena madrugada,   
Venha tocar á porta do Juiz.

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