| FONTE: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO | Ação civil pública 428.01.2005.007548-9 |.
Autos n° 2693/05. 1ª Vara do Foro Distrital de Paulínia. Vistos. O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO ingressou com a presente ação civil pública contra de EDSON MOURA e RONY LINS PRODUÇÕES & PRODUÇÕES E EVENTOS LTDA por entender que o primeiro réu, Prefeito Municipal em 2004, praticou ato de improbidade administrativa ao contratar apresentação musical da cantora Ivete Sangalo para a inauguração do Complexo Paulínia Rodoviária Shopping por R$ 550.000,00 (quinhentos e cinqüenta mil reais). Argumenta o Parquet que o procedimento adotado não cumpriu as exigências da Lei 8.666/93. Além disso, o preço pago supera o preço de mercado e consiste em malbaratamento do dinheiro público, em evidente desrespeito aos princípios da razoabilidade e da economicidade. Eventual responsabilidade da empresa nos danos deve ser apurada. Requer a procedência da ação, com aplicação das penalidades do artigo 12, inciso II, da Lei 8.429/92. A inicial veio acompanhada do inquérito civil (fls. 18/641). Os réus apresentaram manifestações preliminares (653/659 e 682/749) e a inicial foi recebida, repelindo-se as prejudiciais levantadas (fls. 819/820). Regularmente citada, a empresa ré apresentou contestação (fls. 891/898), afirmando que não concorreu para qualquer dano ao patrimônio público, posto que havia contratado uma apresentação da cantora Ivete Sangalo que se realizaria no litoral paulista. Foi, então, procurada pela Prefeitura Municipal para que cedesse tal data. A proposta foi aceita pela Secretaria de Negócios Jurídicos, não havendo qualquer ilegalidade. A empresa apenas exerceu seu livre direito ao vender a apresentação, já que tinha contrato de exclusividade com a cantora para aquele dia. Requer a improcedência. Em sua resposta (fls. 913/970), EDSON MOURA, alegou preliminar de inépcia da petição inicial e, no mérito, defendeu o ato em análise, aduzindo que sua conduta não se insere em nenhuma das previstas no artigo 10 da Lei de Improbidade Administrativa, inexistindo dolo. O contrato foi realizado após aprovação da Secretaria de Negócios Jurídicos e uma vez escolhida a cantora Ivete Sangalo para realizar a apresentação musical no dia eleito para a inauguração do empreendimento, logrou constatar que naquela data a empresa co-ré era a detentora dos direitos do “show” da cantora. O preço se revelou adequado, diante da análise do custo benefício almejado e ocorrido. No caso incide a dispensa de licitação e o valor despendido não é excessivo. A apresentação atendeu os princípios contidos na Constituição Federal. Levantou questões referentes ao desenvolvimento do Município e requereu a improcedência. Réplica às fls. 979/980. Foi o feito saneado às fls. 982/983, afastando-se as preliminares. É o breve relato. Decido. Nos termos do art. 330, inciso I, do Código de Processo Civil, é de rigor o julgamento conforme o estado do processo, tendo em vista que a questão de mérito é unicamente de direito, não necessitando de produção de prova em audiência. Nesta seara, “predomina a prudente discrição do magistrado, no exame da necessidade ou não da realização de prova em audiência, ante as circunstâncias de cada caso concreto e a necessidade de não ofender o princípio basilar do pleno contraditório” (STJ - 4ª Turma, REsp 3.047-ES, DJU 17.9.90, p. 9.514, 2ª col.). Utilizando desta prudente discrição, torna-se desnecessário prolongar inutilmente o feito, com a designação de audiência, uma vez que a matéria já está provada, não tendo que se falar em qualquer ofensa os princípios constitucionais da ampla defesa, contraditório ou devido processo legal. As provas já constantes dos autos ministram elementos suficientes à adequada cognição da matéria em torno do qual gravita a demanda, remanescendo questão unicamente de direito a ser deslindada. Passo a análise do mérito. A improbidade administrativa é um cancro que corrói a administração pública. Pelo seu efeito perverso, que afeta a vida da sociedade causando descrédito e revolta contra a classe dirigente em geral. Acaba por minar os princípios basilares que estruturam o Estado Democrático de Direito. É comum confundir ato de improbidade administrativa com ato ilegal e lesivo ao patrimônio público, pressuposto básico da ação popular. O conceito de improbidade é bem mais amplo. É o contrário de probidade, que significa qualidade de probo, integridade de caráter, honradez. Logo, improbidade é o mesmo que desonestidade, mau caráter, falta de probidade. Assim, podemos conceituar o ato de improbidade administrativa como sendo aquele praticado por agente público, contrário às normas da moral, à lei e aos bons costumes, ou seja, aquele ato que indica falta de honradez e de retidão de conduta no modo de proceder perante a administração pública direta, indireta ou fundacional, nas três esferas políticas. É tratado com seriedade e severidade por nossa Constituição Federal, que prescreve em seu artigo 37: "Art. 37 – A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: ..." “Parágrafo 4º - Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível. "Lamentavelmente a legislação infraconstitucional, voltada para a extirpação deste câncer social, é lacunosa e defeituosa, talvez, por falta de vivência prática dos legisladores, o que até seria um mal menor. Antes do advento da Lei nº 8.429/92 a ordem jurídica só se preocupava com o enriquecimento ilícito. Assim é que a Lei nº 3.164, de 1º de junho de 1957, previa o seqüestro de bens de servidor público, adquiridos "por influência ou abuso de cargo ou função pública, ou de emprego em entidade autárquica", sem prejuízo da responsabilidade penal (art.1º). Conferia ao Ministério Público e ao cidadão a titularidade para requerer a medida cautelar perante o juízo cível. Complementando esse diploma legal, sobreveio a Lei nº 3.502, de 21 de dezembro de 1958, elencando as hipóteses caracterizadoras de enriquecimento ilícito no exercício do cargo ou função pública. Nenhuma dessas leis explicitou o sentido da expressão "influência ou abuso de cargo, função ou emprego público". Outrossim, só após o advento de Reforma Administrativa, implantada pelo Decreto Lei nº 200/67, é que as empresas estatais passaram a integrar a administração indireta do Estado. Essas leis foram substituídas pela Lei nº 8.429/92. Vale a pena lembrar, ainda, o art. 4º da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950, que define os crimes de responsabilidade, incluindo dentre eles o ato atentatório a probidade na administração (inciso V). Atentar contra a probidade na administração, aparentemente, se identificaria com ato de improbidade administrativa de que estamos falando. Porém, não é bem assim, porque o artigo 4º desta última lei considera como crime de responsabilidade política os atos que atentam contra a probidade na administração. E o órgão competente para instauração do processo e julgamento do agente público, por crime de responsabilidade política, não é o Judiciário, mas o Legislativo a quem compete, se procedente a denúncia, decretar a perda da função pública, sem prejuízo das demais sanções cabíveis. Todas essas ponderações se prestam a demonstrar que, gradativamente, nosso ordenamento jurídico vem se aprimorando e tentando responder, cada vez mais, à indignação que tais atos causam à população. A Lei 8.429/92 define o ato de improbidade administrativa, os sujeitos ativo e passivo, as penalidades cabíveis, bem como, regula o procedimento administrativo e o processo judicial para investigação e punição do agente público infrator. Segundo essa lei, improbidade administrativa comporta claramente três modalidades. Os artigos 9º, 10 e 11 definem respectivamente os atos de improbidade administrativa que importam no enriquecimento ilícito, que causam prejuízo ao erário, e que atentam contra os princípios da administração pública. Exemplos da 1ª modalidade: adquirir, para si ou para outrem, no exercício do mandato, cargo, emprego ou função pública, bens de qualquer natureza cujo valor seja desproporcional à evolução do patrimônio ou à renda do agente público. Exemplo da 2ª modalidade: ordenar ou permitir a realização de despesas não autorizadas em lei ou regulamento. Exemplo da 3ª modalidade: praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência. Voltemo-nos ao presente caso concreto. Por primeiro, será analisada a conduta do réu, incluída na petição inicial como um dos casos da 2ª modalidade acima mencionada. O réu, na qualidade de Prefeito Municipal, contratou uma apresentação da cantora Ivete Sangalo para a inauguração de um empreendimento municipal pelo valor de R$ 550.000.00 (quinhentos e cinqüenta mil reais). Necessário que sejam tecidas algumas considerações sobre a forma de contratação. A Constituição Federal do Brasil (artigos 37, inciso XXI, e 175) estabelece que, ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratadas pela administração pública (direta, indireta ou fundacional) de qualquer dos Poderes (da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios), mediante processo de licitação pública. A licitação - que tem como modalidades a concorrência, a tomada de preços, o convite, o concurso ou leilão (Lei 8.666, artigo 22) - deve assegurar igualdade de condições a todos os participantes, fixar exigências de qualificação técnica e econômica e manter as condições efetivas de proposta. Todo o processo deve, assim, obedecer aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, probidade administrativa, vinculação ao instrumento convocatório, julgamento objetivo, e atingir os fins precípuos de garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e de selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração Pública. Trata-se de garantia tanto para a Administração, como para o administrado. Considerando que qualquer ato administrativo deve se pautar na mais estrita legalidade, a Lei de Licitações prevê casos de dispensa e inexigibilidade de licitação. É o que ocorre com o caso presente. Na contratação de profissionais de qualquer setor artístico, diretamente ou através de empresário exclusivo, desde que consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública, o procedimento de licitação não é exigido (artigo 25 da Lei nº 8.666). O Ministério Público argumenta na inicial que tal inexigibilidade somente pode incidir sobre o valor pago ao artista e não a toda a produção decorrente da apresentação. E com razão. Não se pode dar interpretação extensiva ou abrangente às normas de direito público, ainda mais no que se refere a exceções expressas em lei. Nesse contexto, basta se analisar o próprio contrato entabulado entre a empresa RONY e terceira empresa (Nininha Faria Produções Artísticas Ltda) que regeu a relação travada com a cantora Ivete Sangalo (fls. 67/76) para se constatar que apenas o valor do cachê, que foi de R$ 230.000,00, é que se enquadra no dispositivo acima elencado. Existe uma série se exigências da artista como, por exemplo, uma aeronave particular para o transporte da cantora, passagens aéreas para os integrantes da equipe (24 pessoas), hospedagem em hotel de primeira categoria, carro blindado, entre muitas outras. Contudo, salvo o cachê, nenhum outro item se encontra dentro dos casos do artigo 24 e 25 da Lei 8.666/93. Em sua defesa, o réu alega que a contratação se deu pelo preço proposto pela empresa RONY em razão desta deter os direitos exclusivos do “show” da cantora para o dia que pretendeu realizar a inauguração do Complexo Paulínia Rodoviária Shopping. Contudo, essa conduta demonstra evidente burla ao procedimento licitatório. A lei prevê expressamente a inexigibilidade do procedimento administrativo anterior a tal tipo de contratação não para facilitá-la, ou por mero capricho, mas única e exclusivamente porque, em se tratando de profissional de setor artístico, a concorrência é inviável, sem qualquer sentido. Assim, com relação a toda a organização da apresentação, não poderia a Administração Pública ter simplesmente aceito a proposta da empresa ré. Não se trata de serviço único, singular. E para isso deveria ter atentado o réu, administrador do Município na ocasião. Interessante observar que o parecer elaborado pelo assessor jurídico da prefeitura, dando aval para a contratação, em nenhum momento questionou o valor exigido pela empresa. Nem ao menos se questionou quais seriam as condições do contrato entabulado com a cantora, apenas havendo a seguinte referência atribuída ao Secretário dos Negócios Jurídicos: “Assim, o preço apresentado está compatível com a grandiosidade e com a qualidade da artista que se pretende contratar, conforme o material que transmita sua notoriedade, todos anexados à presente.” (fls. 30). A notoriedade da artista contratada é inequívoca e justifica a inexigibilidade de licitação. O que não a justifica é a contratação terceirizada de toda estrutura exigida pela famosa cantora. O réu chega a alegar que eventual sobrevalorização praticada pela empresa RONY é “plenamente aceitável” em razão do custo da apresentação e seu benefício. Ocorre que este critério, qual seja “custo x benefício” não se encontra previsto em nenhuma lei como causa de dispensa de licitação. Ainda que a empresa ré fosse a exclusiva detentora dos direitos do “show” da cantora, não poderia a Prefeitura, sem o regular procedimento de licitação, comprar seus serviços, pois com relação a estes a concorrência é plenamente possível. É certo que o pacto realizado entre a RONY e a empresa Nininha (cujo objeto é a realização da apresentação da cantora) prevê que a cessão de direitos somente pode ocorrer com a concordância expressa. Todavia, em nenhum momento se demonstrou nos autos que se aventou a possibilidade da negociação ocorrer de outra forma. Não se tentou cumprir a legalidade, fazendo-se proposta no único sentido que tornaria o contrato válido, qual seja o Município comprar os direitos da ré, sub-rogando-se em suas obrigações contratuais, com a expressa anuência de quem de direito. Seria essa, no mínimo, a conduta a se esperar de um administrador cauteloso e seguidor da lei e não simplesmente aceitar um preço, no qual sequer foi discriminado a que se destinava. Ainda que se considere que as intenções íntimas do réu tenham sido as melhores possíveis, não se pode aceitar tal tipo de conduta de um administrador público, que gerencia dinheiro do contribuinte. Note-se que os documentos de fls. 273/274 demonstram que a empresa co-ré contratou outra empresa (Ilha dos Artistas Produções Promoções e Eventos Ltda ME) que recebeu R$ 154.850,00 (cento e cinqüenta e quatro mil e oitocentos e cinqüenta reais) para “prestação de serviço de toda estrutura p/ Show Ivete Sangalo” (esta é a discriminação dos serviços prestados na nota fiscal...). Deparamo-nos, novamente, com a cristalina evidência que tais serviços não poderiam ser contratados sem licitação. Sequer foi a empresa ré quem os realizou, comprovando que foram cedidos a terceiro, mesmo com a referida cláusula contratual. Ora, se houve permissão para que terceira empresa realizasse os serviços – mesmo com a alegada exclusividade da empresa ré -, por que não poderia o Município se encarregar em prestá-los dentro da lei? A resposta é: não poderia; deveria. Era dever do Prefeito observar os estritos limites da lei. A conveniência e oportunidade lhe são dados pela lei, nos casos expressos e dentro de limites. Como acima já referido, não cabe qualquer interpretação extensiva no caso presente. A discricionariedade já foi exercida na escolha do dia da inauguração e da artista, sem dúvida uma das mais renomadas do país em seu segmento e certamente a mais economicamente valorizada. Nesse ponto, não cabe nesta ação discutir se o valor pago a título de cachê à Ivete Sangalo corresponde a valores cobrados por outros artistas, nem mesmo comparar eventuais notícias veiculadas em periódicos. São meras especulações. Tal preço só pode ser estimado pelo próprio artista e está alheio a qualquer comparação. Se a cantora e sua equipe entenderam que para a realização de um “show” de no mínimo 90 minutos na cidade de Paulínia deveriam cobrar R$ 230.000,00 (duzentos e trinta mil reais) não existem argumentos capazes de provar que não se trata de justo valor, muito embora no contrato entabulado com a empresa Nininha por este mesmo valor a cantora se comprometia por uma hora e meia. Contudo, como se verá adiante, este valor poderá ser alvo de apuração; não pelo que representa, mas pelo que foi efetivamente pago à artista. A questão, ainda, deve ser analisada por outro ângulo; aquele filtrado pelos parâmetros da razoabilidade, legalidade e da proporcionalidade. São princípios que censuram o ato administrativo que não guarde uma proporção adequada entre os meios que emprega e o fim que a lei almeja alcançar. A razoabilidade encontra ressonância na ajustabilidade da providência administrativa consoante o consenso social acerca do que é usual e sensato. Razoável é conceito que se infere a contrario sensu; vale dizer, escapa à razoabilidade "aquilo que não pode ser". A proporcionalidade, como uma das facetas da razoabilidade, revela que nem todos os meios justificam os fins. Os meios conducentes à consecução das finalidades, quando exorbitantes, superam a proporcionalidade, porquanto medidas imoderadas em confronto com o resultado almejado. Nesse ponto, volto à alegação do réu de que o acréscimo do preço realizado pela empresa requerida se justifica pelo “custo x benefício”. Nos exatos termos acima mencionados, o meio empregado – dispensa da licitação para contratação dos serviços – se mostra exorbitante e, portanto, não razoável e desproporcional. Não há como se considerar que é do consenso comum não se exigir de um administrador público o fiel cumprimento da lei. Também não há como se aceitar que a gerência pública não seja transparente - como não o foi. No caso presente, repita-se, dos R$ 550.000,00 (quinhentos e cinqüenta mil reais) pagos pela Prefeitura à empresa co-ré, foram gastos R$ 154.850,00 (cento e cinqüenta e quatro mil e oitocentos e cinqüenta reais) a título de “serviços” prestados por empresa estranha aos contratos encartados nos autos. Quais seriam serviços? A construção de um palco, o aluguel de equipamentos de som, por exemplos? Provavelmente sim... Mas nenhuma prova há no sentido do que foi realmente executado. Note-se, por hipótese, que o próprio Complexo inaugurado possui um centro cultural e não há notícias se tal estrutura foi ou não utilizada para o “show”... Tratando-se de dinheiro público, nenhuma margem há para meras probabilidades. É preciso certeza, clareza e precisão, subsunção à lei. Nos autos, não se demonstrou sequer quais foram os referidos serviços prestados, o que dá margem a inúmeros questionamentos. E a probidade, o uso correto do dinheiro público deve ficar à margem de qualquer questionamento. O legislador e, acima dele, a Constituição Federal impõem deveres à Administração para salvaguardar o interesse público de qualquer ação que possa ser considerada suspeita. E a mera suspeita da ação irregular de um agente público já gera a falta de honradez, de retidão, de integridade, de prudência que lhe deve ser inerente e que o cidadão já está cansado de não encontrar em seus representantes. A Administração, ainda que atue no exercício de seu poder discricionário, terá sempre de obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista racional, acatando as finalidades da lei atributiva da discrição manejada. Aplicando-se ao caso presente, a inexigibilidade da licitação para contratar artista confere discricionariedade somente para a escolha deste e não para a contratação de inúmeros serviços decorrentes. A lei prescreve a contratação de “artista” sem licitação e não de “show ou apresentação” sem certame. O fato de a lei conferir ao administrador certa liberdade significa que lhe deferiu o encargo de adotar, ante a diversidade de situações a se enfrentar, a providência mais adequada a cada qual delas. Não significa, como é evidente, que lhe haja outorgado o poder de agir como bem entender ou conforme o julgamento particular sobre qual é o melhor “custo x benefício”. Nessa seara pode-se questionar – perante a afirmação do réu de que não havia alternativa de pactuar diretamente com a cantora, ante a exclusividade da empresa ré para aquele dia -, se não seria mais vantajoso ao Município a contratação de algum outro artista, dentre os inúmeros de grande renome que porventura tivessem livre o dia escolhido para a inauguração do Complexo. A despeito da grandiosidade do empreendimento, alegada na Defesa (com 61 lojas, 2 cinemas, área de lazer, praça de alimentação e entretenimento), não foi feito nenhum estudo de qual o tipo de público que se almejava atingir, a fim de, por exemplo, contratar o artista que mostrasse maior empatia. Desponta dos autos que Ivete Sangalo foi escolhida aleatoriamente “com o objetivo de que a população habitue-se ao local”, conforme o parecer da Secretaria dos Negócios Jurídicos. Relevante ao caso, também, a observação de que o parecer do assessor jurídico já mencionado anteriormente, que encontrou motivos para enquadrar as despesas no artigo 25, inciso III, da Lei 8.666/93 foi confeccionado em 09 de novembro de 2004, ou seja, um dia antes da apresentação e do pagamento feito pela Prefeitura à co-ré, que, em tese, ainda deveria ser submetido ao devido empenho, lançamento e a regras pertinentes que comandam a movimentação de dinheiro público. Outro ponto a se considerar, ainda sob o crivo da razoabilidade e proporcionalidade – e também economicidade - é que em nenhum momento se cogitou a possibilidade de alteração da data da inauguração. Ora, as obras do Complexo demandaram certo tempo para que efetivamente estivessem a ponto de ser inauguradas. Notícias de periódicos juntados aos autos dão conta de que as 61 lojas e 2 cinemas não foram abertos ao público por um razoável tempo, não havendo prova de que sequer atualmente estejam em atividade. Por que, então, não se aguardar melhor oportunidade para a inauguração com a indispensável apresentação de Ivete Sangalo se o réu EDSON havia sido reeleito um mês antes, nas eleições de 03 de outubro de 2004? Ainda teria todo um mandato para fazê-lo dentro da lei... Ao contrário, preferiu agir sem razão, burlar a lei e causar desperdício de dinheiro público. Entendo que a razoabilidade - princípio que se fundamenta nos mesmos preceitos que arrimam constitucionalmente os princípios da legalidade e da finalidade – deve ser considerada à vista do ato em si considerado, de sua própria finalidade e do fim previsto pela lei ao caso concreto, nos moldes acima referidos. Não tenho por adequada a comparação a outros atos e gastos da Administração, como pretende o Ministério Publico ao mencionar número de creches e a riqueza do Município, até porque a presente ação não é movida contra a Prefeitura. O gasto em questão até poderia ser proporcional ao porte da cidade do ponto de vista econômico e financeiro, mas a dispensa do procedimento legal para a contratação de um “show”, às pressas (o procedimento teve início em 5 de novembro – fls. 60), não era providência legal, razoável, nem prudente. Vislumbro, portanto, que houve inequívoco malbaratamento do dinheiro público por não ter o réu observado a legalidade à qual estava vinculado, propiciando, ainda, ganho injustificado de terceiros, nos termos do artigo 10, incisos II e VIII, da Lei 8.249/92. O dolo é inequívoco, diante do próprio procedimento que antecedeu a contratação, desatinado a, intencionalmente, autorizar a realização do “show” sem licitação e em benefício de pessoa jurídica de direito privado. Ante o acima exposto, a despeito de ser nulo o contrato celebrado entre a Prefeitura e a empresa requerida, não pode ser pleiteada tal declaração nesse feito, posto que nele não foi incluída uma das partes contratantes, qual seja a Prefeitura Municipal de Paulínia. A nulidade, derivada da falta de observância da Lei 8.666/93 apenas serve para caracterizar a improbidade, nos termos acima referidos, considerando, ainda, que a presente ação visa apenas a punição do réu, Prefeito Municipal na ocasião e da empresa co-ré. No que se refere à conduta da empresa ROY inequívoco que direta ou indiretamente se beneficiou com o ato. Mencionando suas próprias alegações, traz a justificativa de que havia contratado a apresentação da cantora Ivete Sangalo para: “realizar o projeto denominado “Carnaval Fora de Época”, que ocorreria no litoral paulista, sendo que toda a estrutura do evento já estava acordada e reservada, com seu plano de mídia pronto, com lançamento oficial do evento previsto para 20/10/2005, a fim de que o impacto de mídia atingisse uma grande dimensão de público, como ocorre em todos os shows desta brilhante e incomparável artista do cenário nacional e internacional” (fls. 894). Porém, mesmo diante das mencionadas dimensões do citado evento aceitou negociar em troca um “show” de inauguração do Complexo Shopping Rodoviária de Paulínia... Difícil acreditar que tenha recebido somente R$ 13.684,00 (treze mil seiscentos e oitenta e quatro reais), conforme a planilha de fls. 267. É o próprio réu EDSON, em sua contestação, que faz as contas para um evento semelhante ao mencionado pela co-ré (fls. 947), que resulta numa quantia superior ao dobro do recebido da Prefeitura. Utilizando-se novamente a expressão do Prefeito: qual seria o custo x benefício da empresa ré? Se já havia organizado, contratado, reservado com terceiros um evento de grandes proporções, certamente a rescisão lhe causou danos... E mesmo que tenha sido aquele seu reduzido ganho efetivo, – pois, conforme já mencionado, entrar nessa seara, por enquanto, seria apenas especular - o recebeu em razão de contrato nulo, ilegal, beneficiando-se diretamente da dispensa de licitação acima mencionada. Acerca dos valores pagos, a planilha e os documentos de fls. 237 ilustram o seguinte: Adiantamento de cachê - R$19.000,00. Diárias de alimentação de equipe de Ivete Sangalo - R$ 3.000,00. Adiantamento pagamento de transporte rodoviário para o equipamento e equipe - R$ 5.000,00. Passagens aéreas da equipe, Músicos Ivete Sangalo BA/SP/BA - R$39.000,00. Transp.Equipamentos - .R$7.000,00. Cachê do artista - R$215.726,00. 10%N/F - R$52.250,00. Ilha dos Artistas - R$154.840,00. Despesas administrativas Rony Lins Produções - R$13.684,00. Total pago pela prefeitura de Paulínia – SP - R$ 522.500,00. Importante observar que os comprovantes de depósito de fls. 233, demonstram que para a empresa de Ivete Sangalo (Caco de Telha Promoções Ltda – fls. 64) foram destinados R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais), que na planilha acima não foram sequer discriminados. Naquele documento encontra-se a seguinte frase: “Comprovantes dos depósitos referentes ao Show da Ivete Sangalo no dia 10/11/2004”. Já para a empresa Nininha Faria Produções Artísticas Ltda (fls. 234) foram pagos R$ 215.726,00 (duzentos e quinze mil e setecentos e vinte e seis reais). São valores que se distanciam do estabelecido no próprio contrato entabulado entre esta última empresa e a ré. Nesse pacto, foi previsto que o valor de R$ 230.000,00 (duzentos e trinta mil reais) seriam pagos a título de cachê e que todas as despesas referentes ao transporte da artista, seus músicos, equipamentos, hospedagem, hotéis, entre outros, seriam “por conta“ da empresa RONY LINS PRODUÇÕES & PROMOÇÕES E EVENTOS LTDA (fls.10/11). Ou seja, sequer a prestação de contas foi exigida pelo réu na oportunidade, nem mesmo o simples conhecimento de qual negociação foi realizada com terceiro, notando-se que há grande discrepância entre os valores informados na planilha e os depósitos realizados. Até mesmo o valor depositado na conta da empresa ré pela Prefeitura é inferior ao previsto no contrato (R$ 522.500,00 (quinhentos e vinte e dois mil e quinhentos reais)). Não se pode admitir que a Administração Pública, no afã de atender o desejo do administrador, permita que empresas particulares aufiram lucros, sem qualquer procedimento administrativo regular. No caso presente, houve a compra do “show” pela empresa Nininha, cujo contrato entabulado com a cantora não é de conhecimento deste processo - mas que poderá ser alvo requisição e análise em sede de execução - seguindo-se pela compra do mesmo “show” pela empresa RONY, que, finalmente, revendeu para a Prefeitura de Paulínia. É notório e até mesmo esperado que empresas particulares ajam em busca do maior lucro possível, ainda mais na área instável de produção de eventos, mas não se pode ser ingênuo ao ponto de aceitar que no presente caso tenha sido diferente. Ou seja, o preço pago pelo Município de Paulínia teve que ser suficiente a satisfazer não só a cantora Ivete Sangalo e sua empresa, mas também outras duas pessoas jurídicas. Incontroverso, portanto, que a empresa ré concorreu para o ato de improbidade, bem como dele se beneficiou, auferindo lucro que a Administração não pode justificar como legal. Imoral e desarrazoada, portanto, a conduta de um Administrador que não se atenta a tais circunstâncias e propicia o desperdício, o mal gasto do dinheiro do contribuinte e causa ganhos infundados a particulares. Note-se que é de estranha imprudência sequer analisar quais os gastos que acobertados pelo dinheiro público, já que até mesmo poder-se-ia propiciar o patrocínio público de fins ilegais. O dano causado será apurado em sede de liquidação e deverá pautar-se no valor efetivamente pago a título de cachê à artista Ivete Sangalo e sua equipe para o “show” do dia 10 de novembro de 2004, procedendo-se quando ao restante a estimativas dos gastos necessários para realização da apresentação da cantora nos exatos moldes em que foi realizada, através de perícia, obedecendo-se as condições do contrato entabulado entre a empresa ré e a empresa Nininha Faria Produções Artísticas Ltda, exceto à cláusula 02. Tais estimativas serão confrontadas com o efetivamente gasto para cada serviço, o que também será alvo de apuração em sede de execução. Os dados e cálculos poderão depender de documentos em poder das partes ou de terceiros, que poderão ser requisitados. Ressalto que a aplicações das sanções independem da apuração efetiva de dano, nos termos do artigo 21 da Lei de Improbidade Administrativa, servindo apenas para quantificar parte das penas. Dessa forma, os atos acima referidos são suficientes para caracterizar a improbidade administrativa no caso presente, impondo-se a procedência da ação, já que a conduta dos réus violou os princípios da administração pública e os deveres de moralidade, legalidade, probidade, razoabilidade e economicidade que lhes eram devidos, causando desperdício do dinheiro do Município e beneficiando terceiro particular. Nos termos do artigo 12 inciso II, da Lei 8.429/92 deverá o réu EDSON perder função pública - caso ocupe na atualidade – e ter os direitos políticos suspensos pelo prazo de cinco anos, não se justificando dilação maior, além de, juntamente com a empresa ROY LINS PRODUÇÕES & PROMOÇÕES E EVENTOS LTDA, serem obrigados a reparar o dano, bem como ficarem proibidos de contratar ou receber benefícios fiscais do Poder Público por aquele prazo. Com relação à multa civil, deverão pagar o mesmo valor do dano a ser apurado em sede de liquidação, nos moldes acima referidos. Fixo nesse montante, que entendo ser adequado ao presente caso, considerando não ser hipótese comprovada de desvio de valores, mas sim de prejuízo aos cofres públicos. Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE o pedido inicial, reconhecendo a prática de ato de improbidade administrativa por parte de EDSON MOURA e RONY LINS PRODUÇÕES & PROMOÇÕES E EVENTOS LTDA, nos termos do artigo 10, “caput” e incisos I e VIII, combinado com o artigo 12, inciso II, ambos da Lei 8.429/92, condenando cada qual, no que couber, à perda da função pública, suspensão dos direitos políticos por cinco anos e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio(a) majoritário(a), pelo prazo de cinco anos e ao ressarcimento dos danos causados ao Erário e à multa civil no mesmo valor do prejuízo, que deverá a ser apurado em sede de liquidação, nos termos acima referidos. P.R.I.C. Paulínia, 30 de julho de 2008 Arthus Fucci Wady Juiz de Direito.
Os autos foram encaminhados para o TJ para apreciação de recurso de apelação em 14/02/2011.
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