DJE - Caderno 4 - Judicial - 1a Instância - Interior - 15/06/2011, Páginas 106/108.
Fórum de Ilha Solteira
Processo nº 246.01.2010.006551-4
Vara Única
Competência Cível
Requerido: INSS
Trata-se de ação de aposentadoria rural por idade. O nobre advogado juntou provas documentais de que o autor, de 63 anos de idade, laborou no campo, haja vista certidão de casamento (fls. 13/14) figurando o autor em tal documento como lavrador, bem como certidão de casamento de seus pais, na qual consta a profissão de lavrador de seu genitor (fl. 15). Seria o caso de se aguardar o desfecho desta demanda, para o benefício ser implantado? Nas aposentadorias rurais por idade, os autores geralmente são pessoas de baixa renda. Hoje, com os governos se preocupando apenas com o agronegócio, milhares de pessoas padecem da miséria, no campo. São legiões de famintos e sem-terra, que perambulam, feito indigentes, nas terras de nosso País, sem nenhum amparo estatal. A inércia do Executivo não pode passar despercebida pelo Poder Judiciário. Os juízes, sem nenhuma dúvida, têm o compromisso com o cumprimento da Constituição. Não é preciso analisar dispositivos legais, nem mesmo perder-se na inutilidade dos formalismos processuais. Basta, apenas, abrir a Carta da República e, com um simples olhar, lá perceber que o princípio constitucional da dignidade humana traduz fundamento básico da República Federativa do Brasil, a mesma República que tem, como objetivo fundamental, construiu uma sociedade justa, livre e solidária. Não bastasse, a moderna hermenêutica jurídica exige, do jurista, que interprete todos os ramos do Direito, com base no Direito Constitucional. Hoje muito se fala em Direito Civil Constitucional, em Processo Penal Constitucional, etc. A caminhada para chegar a essa evolução foi longa. O século XX percebeu a crise do positivismo jurídico. O Direito não poderia fechar-se às outras áreas do conhecimento. A filosofia, a sociologia, a psicologia deveriam auxiliar o juiz na prolação das decisões judiciais. Foi assim que se notou que o intérprete não poderia mais restringir a atividade de aplicação do Direito no olhar apenas a legislação ordinária. Era preciso atentar-se para a Constituição, que é mais aberta e mais progressista, o que propicia o auxílio de outras áreas do conhecimento e, assim, uma maior aproximação da justiça. Isso não significa o abandono da legislação ordinária e da dogmática jurídica. O que se propõe é que o intérprete de todas as matérias jurídicas as olhe com um tempero constitucional. Restringir a interpretação do Direito ao positivismo jurídico significa, muitas vezes, fechar o círculo do Direito e impedir a entrada da justiça. As leis, vistas cegamente, nem sempre são justas. O nazismo, por exemplo, construiu um Estado governado por leis. Leis injustas. Leis, portanto, que, sem o tempero da justiça, implicaram a formação e funcionamento de um aparelho estatal repressivo e odioso. É por isso que proponho, na esteira do que vem fazendo o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, que todas as leis – no que se incluem as leis previdenciárias – sejam interpretadas com base na Constituição da República. Além disso, as provas documentais, trazidas pelos nobres causídicos, patenteiam a evidência do direito. As últimas reformas processuais civis buscaram, mais do que a efetividade do processo, a prestação jurisdicional em um tempo razoável. Foi com base nessa nova concepção que a lei n. 10.444/2002 introduziu o parágrafo sexto ao art. 273 do Código de Processo Civil. Dessa maneira, a tutela antecipada poderá ser concedida quando um ou mais dos pedidos cumulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso. Buscou-se abreviar a prestação jurisdicional efetiva. Se o réu concordar com um pedido, ou não contestá-lo especificamente, ou se houver fortes provas documentais apontando pelo direito do autor, cumprirá ao juiz antecipar a tutela. Visa-se, com isso, a tutelar os chamados direitos evidentes. Assim se concretiza a cláusula constitucional que prevê a duração razoável do processo. Aliás, é importe dizer que a duração razoável do processo constitui direito humano fundamental e, como tal, deve ser assim interpretada, mormente quando em jogo direitos previdenciários, que dizem, de perto, à própria sobrevivência humana. Questão de direitos humanos, portanto, que encontra guarida no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, nos termos do art. 1º, inciso III, da Constituição Federal. Direitos humanos não são mera poesia constitucional. São algo que diz respeito à essência das pessoas e, quando positivados, constituem normas jurídicas de observância obrigatória. Fábio Konder Comparatto, por exemplo, sustenta que as normas de direitos humanos têm de ser interpretadas no sentido da máxima eficácia, segundo, aliás, já entendem os alemães. É preciso descobrir o processo de construção dos direitos humanos, explicado com primor pelo jurista Alaôr Caffé Filho. Chamei o jurista para me auxiliar não porque desejo dar aulas de filosofia neste decisório, competência, aliás, que me falta. Pedi o favor do jurista, porquanto entendo que todas as decisões devam ser fundamentadas. E fundamentar não é apenas conclamar dispositivos legais. Fundamentar é, antes de tudo, explicar o porquê de estar colocando à consideração esses dispositivos legais. Por isso lanço a tarefa de explicar o mencionado processo de construção dos direitos humanos. Segundo o apontado jurista, os direitos humanos estão relacionados com a política, o social e o econômico. Eles não podem ser visualizados apenas como algo positivado. Assim, todas as idéias, inclusive as referentes a esse tema, ligam-se umbilicalmente à realidade social. É comum, no entanto, desenvolvermos abstratamente as idéias. O ser humano, por exemplo, principalmente nas obras doutrinárias de direito, também é visto de forma abstrata. Mas o correto é entender que existe uma relação dialética entre o ente (realidade social) e o ser (pessoa humana). Não existe a consciência pura, o pensamento em si mesmo. Existe, sim, o ser pensante. Cada pessoa que pensa o mundo pensa segundo sua inserção social. O banqueiro vê diferentemente o mundo, em relação ao bóia-fria. Por que estamos acostumados a pensar os direitos humanos apenas abstratamente? Os valores desenvolvidos pela burguesia é que vêem o ser humano sem enxergar a realidade social. O que vale é o mercado. Dá-se importância às mercadorias. Pensa-se no produto vendável, no produto comprável. Essa mentalidade contamina as vistas, e as vistas passam a ver os direitos humanos como produto. Somos todos consumidores. Vemos os produtos, mas não enxergamos como a colher, que compramos, chegou à prateleira. De onde, então, veio a colher? Veio de diversas operações, para as quais o trabalho humano foi essencial. Tudo o que consumimos não fomos nós que fizemos. Tudo o que consumimos depende do suor, do esforço dos nossos semelhantes. Houve, portanto, pessoas que se esforçaram, para nós continuarmos vivos. Não somos seres abstratos, platônicos, ideais. Não somos o produto de uma transcedentalidade. Nós só somos o que somos porque vivemos numa realidade, e numa realidade de troca. Por isso, somos produto de uma realidade social. Disso se conclui que os direitos humanos estão mergulhados nas relações profundas desenvolvidas entre os homens. Essas idéias surgem na realidade, que nos influencia em tudo, respeitam à nossa própria vida. O ser humano é complexo, é um conjunto de relações sociais. Nas faculdades – não só de Direito – a coisa não é bem dita. Existem generalizações, que interessam a alguns. Bem comum é algo abstrato, algo distante, que não faz nenhuma intersecção à realidade social. Para bem compreender o porquê de os direitos humanos serem vistos abstratamente, pensemos um pouco as relações estruturais. Essas relações são aquelas que dizem respeito aos contatos sociais que os homens mantêm entre si, contatos, esses, essenciais à própria sobrevivência humana. Essas relações são mediadas por coisas, sem as quais a existência humana se evaporaria. Nas relações estruturais, entram os bens de produção. Esses bens são os fundamentais para a sobrevivência dos seres humanos. São esses bens que propiciam a produção de nossas comidas, de nossas roupas, de nossos veículos. São as terras, as usinas. Se se eliminassem os bens de produção, bilhões de pessoas morreriam. Pois bem. Os homens relacionam-se entre si também pelos bens de produção. Se houver manipulação desses bens de produção por uma classe social, poderemos compreender como essa sociedade está organizada, poderemos compreender por que existe tanta desigualdade e miséria. Assim, quem controla os bens de produção manipula-os para a acumulação e impede que a maioria os controle. Há milhões de pobres e poucos ricos. Os pobres detêm a força de trabalho, os ricos, os bens de produção. Dessa maneira, parece que tudo é uniforme, igual, abstrato. Tal como a colher que compramos, os direitos humanos são vistos abstratamente. Não vasculhamos o processo produtivo que rendeu ensejo à colher. Não pesquisamos de onde surgiu a construção abstrata dos direitos humanos e para quem interessa essa construção. Qual a razão dessa ocultação, tanto do processo construtivo dos direitos humanos, bem assim dos mecanismos de produção de uma colher? A explicação é fácil. Quem monopoliza a riqueza faz com que as outras pessoas lhe obedeçam. Os grandes capitalistas controlam as demais pessoas. Há um poder – há os comandantes e os comandados. Os trabalhadores são um poder, mas um poder subordinado. É o Direito que instrumentaliza essa relação. Ao capitalismo, portanto, interessa de perto manter as idéias, manter os homens, manter os direitos, manter tudo no plano abstrato. As declarações burguesas de direitos humanos, por exemplo, falam em igualdade, liberdade e fraternidade, mas sempre de forma abstrata. A crítica é que esse homem geral, abstrato não pode separar-se do homem concreto. Existe uma relação dialética entre eles. Com efeito, o padre diz, na igreja: todos os homens têm direito a serem respeitados. É a idéia do homem geral, universal, sem relevar a particularidade de cada homem que lá está: o bóia-fria, o empresário etc. Se virmos o mundo assim, de forma geral, estaremos discursando como pensamos que o mundo parece ser, e não como o mundo efetivamente é na realidade. Estaremos a fazer ideologia. Fazendo assim, portanto, pensaremos os direitos humanos não de forma concreta, imersa na realidade social, a qual, então, ficará esquecida. Isso é o que, aliás, a maioria dos ditos operadores do Direito faz. Entende, essa maioria, o homem universal, não concreto. Pensar os direitos humanos como algo abstrato, sem enxergar as tensões sociais que emergem deles, é fazer ideologia. É dizer que existe o bem comum, mas esquecer que a realidade social está tensa, está cheia de conflitos. É fazer tábula rasa às desigualdades sociais. É dizer direito onde existe opressão; é falar verdade, onde existe mentira; é falar de amor onde existe desunião. A burguesia, portanto, proclama os direitos de igualdade, liberdade e fraternidade. É que essa classe social, usando adjetivos bonitos, tenta ocultar a verdadeira realidade social. Faz abstrações, para esconder o concreto. Assim, valendo-se dessa enganação, que nada mais é do que a ideologia, submete, com o jugo das idéias, à opressão a classe trabalhadora. A ideologia oculta essa opressão por meio dos poderes das idéias. É manipulada pelo poder econômico, que se vale dos meios de comunicação, das escolas, dos jornais, para dizer ao pobre que se é pobre porque Deus quis assim. É da ideologia que vêm essas abstrações. Por isso, proclamar os direitos humanos, restringindo-os ao plano abstrato, significa oprimir a maioria da população. Significa fazer o jogo da burguesia, dos grandes capitalistas. Assim, os direitos humanos não podem ser anunciados para os céus e serem esquecidos na terra. Falar em liberdade, falar em presunção de inocência, falar em proteção à saúde, falar em igualdade e fraternidade, sem garanti-las nos processos concretos, nada mais é do que fazer o jogo do grande capital, que quer, cada vez mais, considerar os não consumidores e os pobres como clientes não dos produtos do capital, mas clientes e vítimas do sistema prisional. Num Estado Democrático e Social de Direito, os direitos fundamentais apresentam uma dimensão objetiva. Isso significa que esses direitos não interessam apenas ao indivíduo. Interessam, também, e sobretudo, a toda a sociedade em que a pessoa está inserida. O direito alemão, inclusive, advoga a tese de que existe uma relação horizontal entre os direitos fundamentais. Horizontal, porque na relação entre particulares, esses direitos também devem ser assegurados. O ser humano pode invocar, portanto, ao Juiz uma proteção não apenas em face do Estado (dimensão vertical). Pode valer do Judiciário, também, para este assegurar um direito fundamental em face, também, de particulares. A opressão, portanto, não vem apenas do Estado. O grande capital, o poder econômico, nos dias atuais, focado no lucro, muitas vezes deixa de lado a proteção à dignidade humana. Eis, então, o Juiz, que deve, sempre, restabelecer o equilíbrio, para cumprir os desideratos constitucionais. Assim, dada a situação de direitos humanos retratada nestes autos, nada impede, em razão mesmo da força normativa da Constituição Federal, que a tutela antecipada seja concedida, mesmo contra a Fazenda Pública, com vistas a que a prestação jurisdicional seja entregue em prazo razoável, principalmente quando em jogo direitos previdenciários, os quais se inscrevem entre aqueles direitos que propiciam a sobrevivência digna dos seres humanos. Só assim é que se cumprirá, com rigor, o mandamento constitucional. Desse modo, seja pela tutela do direito evidente, seja mesmo diante dos princípios e fundamentos constitucionais acima referidos, é que entendo ser caso de conceder a medida de urgência. Posto isso, CONCEDO A TUTELA ANTECIPADA, de sorte tal que deverá, o requerido, implantar, no prazo de 30 dias, o benefício da aposentadoria rural por idade em favor do autor. Fixo, para o caso de descumprimento desta decisão, multa diária de R$ 200,00. Concedo os benefícios da assistência judiciária gratuita. Cite-se. Cumpra-se, com urgência. Ilha Solteira-SP, 10 de junho de 2011
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